Edição 04 – Fevereiro de 2009

Trinca-ferro-verdadeiro (Saltator similis)

Existem no mundo cerca de 10 mil espécies de aves, das quais quase um terço ocorre na América do Sul, considerada “o continente das aves”. O Brasil, reconhecido por sua megadiversidade, ocupa hoje a segunda colocação em numero de espécies de aves, com 1.822 espécies de ocorrência confirmada em território nacional, entre “residentes” (que passam toda a vida no país) e “visitantes” ou “migratórias” (que passam ao menos parte da vida por aqui).

As aves se dividem em dois grupos distintos: os Passeriformes e os Não-Passeriformes. Os não Passeriformes, na verdade, constituem vários grupos distintos, como os Strigiformes (corujas, caburés etc.), os Apodiformes (andorinhões, beija-flores) e os Piciformes (tucanos, pica-paus), dentre outros. Os Passeriformes são as aves que realmente podemos chamar de “pássaros”. Possuem uma siringe (órgão responsável pelo canto, similar às nossas cordas vocais) de estrutura mais complexa que as outras aves, possibilitando assim notas mais elaboradas no seu canto.
As aves sempre foram animais muito admirados por sua beleza, já que possuem uma grande variação de cores e tamanhos (do menor Beija-flor do mundo, Mellisuga helenae, com 5,7 cm, ao Condor, Gymnogyps californianus, com incríveis 3,1 m de envergadura) além do canto, que possui uma infinidade de tipos.
O canto talvez seja a característica que mais chame a atenção nestes animais. Um daqueles que mais se destaca é o do trinca-ferro-verdadeiro (Saltator similis), o mesmo gênero do bico-de-pimenta ou batuqueiro, ambos Passeriformes da família Cardinalidae, a mesma dos cardeais e dos azulões, todos donos de belos cantos.

A espécie Saltator similis pode receber outros nomes ao redor do Brasil, como “esteves”, “tico-tico-guloso”, “bico-de-ferro”, “pixarro”, ou “trinca-ferro-de-asa-verde”.

Aperte o play e ouça o canto do trinca-ferro-verdadeiro.

Os cantos também podem ser acessados em:  www.xeno-canto.org

Pássaros da família Cardinalidae. A) Trinca-ferro-verdadeiro (Saltator similis). B) Azulão (Cyanoloxia brissonii). C) Bico-de-pimenta (Saltator atricollis).

Hábitos e alimentação

O trinca-ferro-verdadeiro é amplamente distribuído pela América do Sul, pode ser encontrado na Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. No Brasil a espécie ocorre em matas da região da Bahia até o Rio Grande do Sul, habitando bordas de mata, matas ciliares, cerradões, e mata seca, ocupando o estrato médio ou superior da mata. Na maior parte do ano os indivíduos são solitários, formando casais no período reprodutivo (de outubro a janeiro). Enquanto o casal permanece junto, o macho na maior parte do tempo utiliza o seu forte canto para intimidar outros machos e indivíduos de outras espécies que possam ameaçar seu domínio naquele território, principalmente no horário da manhã que é o de maior atividade das aves.
A espécie possui uma dieta insetívora/frugívora, se alimentando principalmente de insetos e podendo complementar a sua refeição com frutos. É devido ao seu robusto bico negro, utilizado para se alimentar, que o Saltator similis recebeu o nome de trinca-ferro. Em certos períodos da vida, o Saltator similis pode se tornar exclusivamente insetívoro.

Trinca-ferro, Saltator similis, alimentando-se de frutos.

Reprodução

O ninho do Saltator similis geralmente é construído entre 1 e 2 m do nível do chão e possui cerca de 12 cm de diâmetro e 11 cm de altura. Os materiais utilizados na construção são talos e macega, forradas posteriormente com raízes finas. Dentro do ninho são encontrados em geral de 2 a 3 ovos, que são da cor azul-claro ou verde-azulados, possuindo na parte superior pequenas manchas que formam uma coroa. Os ovos são encubados em média por duas semanas. Os filhotes nascem muito frágeis (filhotes nidícolas), totalmente nus com os olhos ainda fechados, precisando de muita atenção dos pais, que necessitam buscar alimento para a prole durante quase todo o dia. Em geral, o cuidado parental dura de 3 a 4 semanas, até que os filhotes possam sobreviver por conta própria.

Tráfico

O tráfico de animais é a terceira atividade ilegal que mais movimenta dinheiro no mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. É também a segunda maior ameaça de extinção de espécies, atrás apenas da perda de habitat. As aves são as principais vítimas, devido às suas cores e seu canto, que tanto admiramos. Cerca de 5 a 10 milhões de espécimes são retirados da natureza todo ano e apenas 10% desse total sobrevive ao longo percurso da captura à venda.
Por ter um canto melodioso, o trinca-ferro é uma das aves que mais sofrem com o tráfico de animais no Brasil. Os pássaros normalmente são capturados no interior dos estados do Nordeste e trazidos por atravessadores para o Sudeste e Sul, onde são vendidos para o mercado interno ou até para o exterior.

O trinca-ferro é umas das vítimas do tráfico de animais silvestres.

O trinca-ferro-verdadeiro em Minas Gerais

Saltator similis é uma espécie classificada como não ameaçada em âmbito nacional e no estado de Minas Gerais (conforme “Revisão das Listas das Espécies de Fauna e Flora Ameaçadas de Extinção do Estado de Minas Gerais”, realizada pela Fundação Biodiversitas em 2007). Apesar disso, a espécie vem sofrendo uma grande pressão de captura como vítima do tráfico de animais silvestres.

O trinca-ferro-verdadeiro em Viçosa

Estudos têm classificado o estado de conservação do trinca-ferro-verdadeiro na região de Viçosa como vulnerável, principalmente devido à captura ilegal para criação como animal de estimação. Como em outros estados do Sudeste do Brasil, esta atividade já levou algumas espécies de aves da região de Viçosa à extinção, como o curió (Oryzoborus angolensis) e o azulão (Cyanoloxia brissonii). Se não houver uma conscientização sobre a criação de aves silvestres em cativeiro, o canto do Saltator similis corre o risco de não ser mais ouvido nas matas de Viçosa.

Você Sabia?

leucismo é uma ocorrência genética que confere cor branca aos animais (em alguns casos no corpo todo). Diferentemente dos albinos, que têm olhos rosados, os animais leucísticos possuem olhos normais, e ainda apresentam uma resistência à luz ligeiramente maior, por conseguirem refleti-la melhor. Apesar disso, os indivíduos leucísticos raramente sobrevivem por muito tempo na natureza, pois são facilmente avistados por predadores e pelas suas presas, que acabam escapando. Quando chegam à idade adulta dificilmente se reproduzem, porque é normal serem rejeitados e não conseguirem parceiros para acasalar.

Exemplar de trinca-ferro leucístico.

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Alexander Zaidan de Souza – Biólogo

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