Edição 12 – Outubro de 2009

Rã-das-pedras (Thoropa miliaris)

Os anfíbios, em especial os anuros, grupo de animais que engloba os sapos, rãs e pererecas, são bastante conhecidos por apresentarem duas fases completamente diferentes ao longo de seu desenvolvimento: uma larval aquática, o girino, e uma adulta terrestre, normalmente associada à ambientes aquáticos. Os ovos, de onde emergirão as larvas, são postos e fertilizados em corpos d’água. Entre estas duas fases ocorre o processo de metamorfose, quando o corpo do girino passa por várias mudanças que permitirão que o animal possa viver fora da água. Entretanto, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, nem todas as espécies de anuros se reproduzem e/ou desenvolvem desta maneira.

Algumas espécies de rãs incluídas no gênero Thoropa. A) Thoropa miliaris. B) Thoropa megatympanum. C) Thoropa lutzi. D) Thoropa taophora.

Atualmente são conhecidos 39 diferentes modos de reprodução e desenvolvimento entre os anfíbios anuros, que variam desde o clássico descrito acima até espécies terrestres que não precisam da água para a reprodução. Ao longo deste gradiente entre reprodução aquática e terrestre encontramos modos intermediários, como aquele que é observado na rã-das-pedras, conhecida cientificamente como Thoropa miliaris, e que será descrito mais adiante.

A rã-das-pedras pertence à família Cycloramphidae, um grupo de anfíbios anuros que só existe na América do Sul, e que conta com mais de 100 espécies conhecidas. O gênero Thoropa possui atualmente seis espécies, sendo a rã-das-pedras (T. miliaris) a que possui a distribuição geográfica mais ampla, ocorrendo desde a Bahia até o interior de São Paulo. É uma espécie de médio porte, com adultos podendo atingir entre 70 e 80 mm de comprimento, sendo as fêmeas ligeiramente maiores que os machos. A coloração dorsal é em geral acinzentada, variando em tons mais claros e escuros e o ventre possui uma coloração manchada. Também existem manchas espalhadas de maneira irregular pelo corpo da rã-das-pedras, que lhe proporciona uma camuflagem nos ambientes rochosos em que vive. Entretanto, outras variações na coloração podem ser observadas, desde exemplares que são bem escuros e com manchas amareladas até outros que têm o dorso bastante avermelhado.

Exemplar de  Thoropa miliaris apresentando variação cromática.

Hábitos e alimentação

As espécies de Thoropa são encontradas em áreas originalmente cobertas pela Mata Atlântica e campos rupestres, nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. Thoropa miliaris é sempre observada em ambientes saxícolas (afloramentos rochosos), das costas do Rio de Janeiro até as serras de mais de 1500 m de altitude. Nestes ambientes, a rã-das-pedras é preferencialmente observada onde existe água corrente e frestas no meio dos afloramentos rochosos, que são utilizadas como abrigo durante o dia (são animais noturnos) ou como forma de defesa contra predadores. Ainda podemos encontrar T. miliaris no folhiço do chão da mata (onde também pode se abrigar debaixo de troncos caídos) além de córregos dentro da floresta.

A dieta da rã-das-pedras é generalista, ou seja, ela consome as presas que estiverem disponíveis no ambiente. Invertebrados dos mais variados grupos são seu alimento, tais como formigas, cupins, besouros, gafanhotos, lagartas, libélulas e aranhas. A presença de invertebrados marinhos, como caramujos e baratas-da-praia, já foi reportada em sua dieta, uma vez que a espécie pode habitar afloramentos rochosos próximos do mar.

Reprodução e desenvolvimento

A atividade reprodutiva de Thoropa miliaris ocorre durante os meses mais quentes e chuvosos do ano. Nessa época os machos vocalizam (emitem cantos de anúncio) e atraem as fêmeas (clique aqui para ouvir o canto da rã-das-pedras), a partir de territórios estabelecidos nas áreas de rochas expostas. Os machos podem ser facilmente diferenciados das fêmeas na época reprodutiva, quando apresentam um grande desenvolvimento dos braços. Também podem ser distinguidos pela presença de pequenos espinhos córneos nos três primeiros dedos das patas anteriores, utilizados tanto para auxiliar no abraço sexual (amplexo) durante o acasalamento, como na defesa de seus territórios contra machos rivais.

Macho adulto de Thropa miliaris, mostrando os braços muito desenvolvidos.

Ao contrário de grande parte dos anuros, a desova da rã-das-pedras não é posta dentro ou debaixo d’água, e sim sobre as pedras onde elas vivem, sempre em locais onde a água escorre sobre a rocha, e parcialmente exposta ao sol. As desovas podem ter centenas de ovos, que são escuros e agrupados uns aos outros em uma fina camada. Os machos adultos permanecem próximos das desovas, defendendo-as de invasores. Em poucos dias os girinos eclodem e passam a desenvolver-se sobre as rochas úmidas e iluminadas pelo sol, sendo por isso denominados semiterrestres.

Possuem coloração que os confunde com a superfície rochosa, além de um corpo levemente achatado que lhes fazem parecer “grudados” sobre as pedras. Os girinos utilizam os lábios como ponto de apoio, e se locomovem através de movimentos rápidos da cauda alongada e do abdômen. Escapam com agilidade quando incomodados, movimentando-se contra a corrente de água que desce pelo afloramento rochoso. Alimentam-se das microalgas que crescem sobre a rocha úmida, mas ocasionalmente podem ingerir ovos de sua própria espécie. Após completarem a metamorfose, os filhotes são encontrados com frequência juntos. Porém, à medida que crescem ficam mais solitários e adquirem hábitos noturnos.

A) Desova de Thoropa. B) Girino de Thoropa miliaris.

A rã-das-pedras em Minas Gerais e em Viçosa

Em Minas Gerais a rã-das-pedras pode ser encontrada nas áreas originalmente cobertas pela Mata Atlântica, a leste da Serra do Espinhaço, principalmente nos afloramentos rochosos úmidos, ou próximo a estes ambientes. É considerada uma espécie fora de risco de extinção atualmente, mas o desmatamento, a poluição dos córregos e a mineração são ameaças à suas populações.

No município de Viçosa não existem registros conhecidos desta espécie. Contudo, em regiões próximas ela pode ser facilmente encontrada, como no Parque Estadual da Serra do Brigadeiro e seus arredores.

Você Sabia?

Duas espécies menores de rãs-das-pedras são consideradas ameaçadas de extinção: Thoropa lutzi e T. petropolitana. A primeira ocorria originalmente nas regiões serranas do Rio de Janeiro, sendo que seus últimos registros nesse estado datam do final da década de 1970. Recentemente foi registrada no Espírito Santo e na Serra do Caparaó em Minas Gerais, mas parece ser naturalmente rara. A segunda era abundante na Serra dos Órgãos (RJ), sendo também encontrada em outras áreas serranas do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, porém não é vista desde meados dos anos 1980. A destruição dos ambientes naturais, as alterações no clima e doenças podem ser as principais causas do desaparecimento dessas espécies.

Uma espécie ameaçada de extinção, Thoropa petropolitana

Referências Bibliográficas

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Emanuel Teixeira da Silva – Biólogo

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